quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A revelação da sabedoria de Deus

No dia 19 de Janeiro, alguns elementos do grupo de reflexão FRA reuniram-se no Instituto Justiça e Paz para reflectir sobre o primeiro capítulo da encíclica Fides et Ratio, intitulado A Revelação da Sabedoria de Deus. A reflexão sobre este capítulo da encíclica foi orientada pelo padre Nuno, e depois seguiu-se um momento de diálogo entre os presentes.
O padre Nuno, depois de uma leitura cuidada de algumas partes do primeiro capítulo da Fides et Ratio, prosseguiu a sua prelecção, aludindo ao contributo doutrinário da Constituição dogmática Dei Filius, do Vaticano I, e da Constituição dogmática Dei Verbum, do Vaticano II. Tanto numa como noutra afirma-se a possibilidade do conhecimento de Deus, que Se revelou na História da salvação, pela via da fé e da razão.
No primeiro ponto, denominado Jesus, revelador do Pai, deixa-se patente que a Igreja tem a consciência de ser depositária duma mensagem, cuja origem está em Deus. Nesta ordem de ideias, segundo o orador, a medida não é o homem ou a nossa capacidade, mas Deus. Importa ainda realçar que a Igreja, enquanto sacramento universal de Salvação, é o instrumento ao serviço dessa mensagem divina. Por outro lado, numa atitude gratuita, Deus revelou-Se a Si mesmo e deu a conhecer o mistério da Sua vontade. Deste modo, através de Jesus, revelador do Pai e Verbo encarnado, os homens têm acesso ao Pai no Espírito Santo e tornam-se participantes da natureza divina. A Revelação, cuja plenitude está em Cristo, visa a salvação do homem e o sentido pleno da sua existência.
Ora, Jesus Cristo é o mediador e a plenitude de toda a revelação divina. Por intermédio d`Ele, Deus fala aos homens como amigos e convive com eles, para os convidar e admitir à comunhão com Ele. Importa destacar que a Revelação de Deus em Jesus Cristo, Verbo encarnado, acontece no tempo e na história. Tal Revelação atingiu a sua plenitude com a presença e manifestação de Jesus, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com o Seu Mistério Pascal, e enfim, com o envio do Espírito Santo. Neste contexto, o tempo e a história são duas coordenadas a partir dos quais Deus se aproximou dos homens. Daí podemos afirmar que o Eterno entra no tempo, assumindo o rosto do homem e o seu contexto quotidiano. Convirá ainda sublinhar que a Revelação divina permite ao homem conhecer a verdade última da própria vida e do destino da história, e esclarece o seu mistério no mistério do Verbo encarnado.
O segundo ponto do primeiro capítulo da encíclica, chamado A razão perante o mistério, explana que, embora Jesus tenha revelado plenamente o rosto de Deus, o conhecimento que possuímos acerca d`Ele é sempre parcial e limitado. Neste sentido, a fé é a via que nos permite penetrar no mistério, proporcionando a compreensão coerente do mesmo sem nunca descurar a dimensão racional. Além do mais, o conhecimento da fé não anula o mistério, mas torna-o evidente e apresenta-o como um facto essencial para a vida do homem.
Pode-se, portanto, afirmar que a fé transcende o que é humano sem o desprezar. Por outro lado, a razão inscreve-se no âmbito das limitações humanas. É preciso ter presente que a fé não nasce da simples capacidade humana, visto que tudo aquilo que é humano é finito e ambivalente. Tendo consciência da finitude da razão humana, admite-se que perante o mistério da Revelação ela se sente incapaz de o conhecer por si próprio. Dito isto, verifica-se a transcendência da Revelação em relação à razão humana. Todavia, a fé não só não pode existir sem a dimensão racional, como sai diminuída, quando não se reconhece ou não se fomenta devidamente o lugar da razão na vivência crente.
Por último, cabe sublinhar que a razão é estimulada a superar os seus limites, mediante a abertura à fé. Isso significa que a primeira é convidada a aceitar a luz da Revelação para que possa funcionar com segurança e descubra a verdade revelada. Assim, a fé anima o esforço racional a ir mais longe, de forma a adentrar-se na realidade mais profunda, que a razão por si mesma não conseguia. O que fica dito não significa uma subjugação da razão à fé, mas é ver nela a luz que a orienta na sua busca da verdade. Na realidade, a fé não suprime a capacidade humana, mas precisa de uma razão autónoma aberta à Revelação de Deus Uno e Trino na história. No entanto, «a verdade que a Revelação nos dá a conhecer não é fruto maduro ou o ponto culminante dum pensamento elaborado pela razão…» [Cfr. JOÃO PAULO II, Fides et Ratio., nº 15] , mas sim do amor de Deus, que quis entrar na história da humanidade mediante a Revelação feita em Seu filho Jesus.

Edson

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Sobre a possibilidade da razão sem fé

Caros amigos,

Ontem, sobre o cair do pano da nossa reunião, proferi uma afirmação que, contra as minhas expectativas, gerou dissonância entre os presentes. Providencial, na medida em que é oportunidade para dar estofo aos propósitos que nos levaram à criação do FRA. Julgo que esta questão, que, a meu ver, como pretendo demonstrar a seguir, é pacífica (apenas careceu de tempo para ser explicitada) pode no entanto levar-nos a questões mais bem mais complexas como a possibilidade do ateísmo puro ou a validade/possibilidade de uma razão ideológica ou religiosamente asséptica. Assim sendo, fazendo jus à verdadeira vocação do FRA, pretendo dar o pontapé de saída para uma discussão que nos poderá conduzir a outros campos onde se pode aprofundar a dialéctica do binómio Fé e Razão.
Por outras palavras, quando eu disse que “é possível a razão sem a fé”, era minha intenção (se os termos foram bem empregues ou não, veremos a seguir) afirmar algo que para mim é elementar e incontestável: é possível a filosofia e a ciência sem a fé em Deus. Se alguém quiser contestar esta afirmação estou curiosíssimo por conhecer os argumentos. E, se o conseguir demonstrar com propriedade, é um contributo inestimável que traz ao mundo do pensamento. Que a filosofia e a ciência, que eu albergo sob o tecto da razão, seguindo as directrizes da própria encíclica Fé e Razão [cf. 4, 5], podem funcionar sem o auxílio da fé (embora nós cristãos vejamos aí uma lacuna, como bem sustenta toda a Encíclica Fé e Razão; o Catecismo da Igreja Católica, nos nºs 31-43, 50, 156-159; e já antes Conc. Vaticano I: DS 3004, 3026; e Pio XII, enc. Humani generis: DS 3875) testemunha-o grande parte da ciência e da filosofia produzidas desde o séc. XVIII até à actualidade e das quais não podemos fazer tábua rasa, pois contribuíram enormemente para o conhecimento do homem e do mundo. Mal estaríamos se apenas os crentes em Deus pudessem ser cientistas e filósofos. E alguém me vai dizer que os contributos que ateus e agnósticos trouxeram à humanidade com o auxílio da razão é dispensável, ou até despiciendo? Até um filósofo cristão como Paul Ricœur, agraciado pelo Vaticano, teve, assumida e declaradamente, o salutar cuidado de separar as águas e não misturar dogmas religiosos com filosofia, inibindo-se de meter explicitamente Deus e a religião no seu pensamento filosófico. Percebeu claramente que podia chegar ao mesmo sítio, ser mais convincente e universal, não conferindo um tom confessional explícito ao seu pensamento.
Acreditando que até aqui estamos todos de acordo, resta-me deduzir que o pomo da discórdia provém da polissemia dos conceitos empregues. “A linguagem é fonte de mal-entendidos”, lá dizia o Principezinho. Posto isto, a minha polémica afirmação «é possível a razão sem fé» tem de partir necessariamente de uma clarificação de conceitos. Não creio que o problema esteja no conceito de razão, ainda assim tentemos esclarecê-lo, sem a exigência que uma definição inexpugnável e rigorosa requereria. A despeito das nuances, as várias definições de razão que consultei remetem, por palavras minhas, para a ideia basilar de faculdade intelectual/mental do ser humano que lhe permite conhecer, compreender e raciocinar (seja sob o modo lógico-hipotético-dedutivo, indutivo ou argumentativo) alcançando verdades acerca do ser e da realidade que o envolve. A própria encíclica Fé e Razão, sem nunca tentar explicitamente uma definição, parece ir nesse sentido ao dizer que a razão recta (orthos logos, sim um dos significados do termo grego logos é razão) consegue «intuir e formular os princípios primeiros e universais do ser, e deles deduzir correcta e coerentemente conclusões de ordem lógica e deontológica» [4]. Coloca dentro do conceito de razão «sistemas de pensamento complexos, que deram os seus frutos nos diversos sectores do conhecimento, favorecendo o progresso da cultura e da história. A antropologia, a lógica, as ciências da natureza, a história, a linguística, todo o universo do saber» [FR, 5].
No entanto, julgo que o busílis da questão vem da indefinição do conceito de fé. A minha polémica afirmação pode ser considerada incorrecta se entendermos a fé no seu sentido mais lato e abrangente, caucionado pela etimologia grega e latina. Neste âmbito, o termo “Fé” é plurívoco e pode ser usado, como é actualmente na linguagem corrente (até no mundo do futebol), em múltiplas acepções: “crença absoluta na existência de certo facto”; “convicção íntima”; “lealdade”; “crédito”; “confiança”; “prova”. Partindo deste feixe de significações, direi (com algumas reservas que carecem outro tipo de aprofundamento epistemológico e que têm que ver com a procura de prova que este tipo de crença exige) que não há razão sem fé. O problema é que eu não sei se é justo chamar fé a este tipo de atitude. A esta forma de fé assente no postulado e na confiança interpessoal a Encíclica Fé e Razão chama crença, separando muito bem a crença da fé, como eu próprio tentei fazer junto de vós ao defender a minha afirmação. Vejamos:

31 O homem não foi criado para viver sozinho. Nasce e cresce numa família, para depois se inserir, pelo seu trabalho, na sociedade. Assim a pessoa aparece integrada, desde o seu nascimento, em várias tradições; delas recebe não apenas a linguagem e a formação cultural, mas também muitas verdades nas quais acredita quase instintivamente. Entretanto, o crescimento e a maturação pessoal implicam que tais verdades possam ser postas em dúvida e avaliadas através da actividade crítica própria do pensamento. Isto não impede que, uma vez passada esta fase, aquelas mesmas verdades sejam «recuperadas » com base na experiência feita ou em virtude de sucessiva ponderação. Apesar disso, na vida duma pessoa, são muito mais numerosas as verdades simplesmente acreditadas que aquelas adquiridas por verificação pessoal. Na realidade, quem seria capaz de avaliar criticamente os inumeráveis resultados das ciências, sobre os quais se fundamenta a vida moderna? Quem poderia, por conta própria, controlar o fluxo de informações, recebidas diariamente de todas as partes do mundo e que, por princípio, são aceites como verdadeiras? Enfim, quem poderia percorrer novamente todos os caminhos de experiência e pensamento, pelos quais se foram acumulando os tesouros de sabedoria e religiosidade da humanidade?
Portanto, o homem, ser que busca a verdade, é também aquele que vive de crenças.

32 Cada um, quando crê, confia nos conhecimentos adquiridos por outras pessoas. Neste acto, pode-se individuar uma significativa tensão: por um lado, o conhecimento por crença apresenta-se como uma forma imperfeita de conhecimento, que precisa de se aperfeiçoar progressivamente por meio da evidência alcançada pela própria pessoa; por outro lado, a crença é muitas vezes mais rica, humanamente, do que a simples evidência, porque inclui a relação interpessoal, pondo em jogo não apenas as capacidades cognoscitivas do próprio sujeito, mas também a sua capacidade mais radical de confiar noutras pessoas, iniciando com elas um relacionamento mais estável e íntimo.
Importa sublinhar que as verdades procuradas nesta relação interpessoal não são primariamente de ordem empírica ou de ordem filosófica. O que se busca é sobretudo a verdade da própria pessoa: aquilo que ela é e o que manifesta do seu próprio íntimo. De facto, a perfeição do homem não se reduz apenas à aquisição do conhecimento abstracto da verdade, mas consiste também numa relação viva de doação e fidelidade ao outro. Nesta fidelidade que leva à doação, o homem encontra plena certeza e segurança. Ao mesmo tempo, porém, o conhecimento por crença, que se fundamenta na confiança interpessoal, tem a ver também com a verdade: de facto, acreditando, o homem confia na verdade que o outro lhe manifesta […].

33. Deste modo, foi possível completar progressivamente os dados do problema. O homem, por sua natureza, procura a verdade. Esta busca não se destina apenas à conquista de verdades parciais, físicas ou científicas; não busca só o verdadeiro bem em cada um das suas decisões. Mas a sua pesquisa aponta para uma verdade superior, que seja capaz de explicar o sentido da vida; trata-se, por conseguinte, de algo que não pode desembocar senão no absoluto. (28) Graças às capacidades de que está dotado o seu pensamento, o homem pode encontrar e reconhecer uma tal verdade. Sendo esta vital e essencial para a sua existência, chega-se a ela não só por via racional, mas também através de um abandono fiducial a outras pessoas que possam garantir a certeza e autenticidade da verdade. A capacidade e a decisão de confiar o próprio ser e existência a outra pessoa constituem, sem dúvida, um dos actos antropologicamente mais significativos e expressivos.
É bom não esquecer que também a razão, na sua busca, tem necessidade de ser apoiada por um diálogo confiante e uma amizade sincera. O clima de suspeita e desconfiança, que por vezes envolve a pesquisa especulativa, ignora o ensinamento dos filósofos antigos, que punham a amizade como um dos contextos mais adequados para o recto filosofar.
Do que ficou dito conclui-se que o homem se encontra num caminho de busca, humanamente infindável: busca da verdade e busca duma pessoa em quem poder confiar. A fé cristã vem em sua ajuda, dando-lhe a possibilidade concreta de ver realizado o objectivo dessa busca. De facto, superando o nível da simples crença, ela introduz o homem naquela ordem da graça que lhe consente participar no mistério de Cristo, onde lhe é oferecido o conhecimento verdadeiro e coerente de Deus Uno e Trino. Deste modo, em Jesus Cristo, que é a Verdade, a fé reconhece o apelo último dirigido à humanidade, para que possa tornar realidade o que experimenta como desejo e nostalgia.


Acima, expusemos os vários sentidos de fé, mas não referimos, propositadamente, o significado religioso do termo, que a Encíclica e todos os escritos da Igreja desde a Bíblia emprega. Ainda que ignoremos esta diferença entre crença vulgar e Fé, considerando que tudo em que se acredita é fé e, logo, não pode haver razão sem fé, a dimensão cristã (já nem falo em religiosa que é para não nos perdermos nas areias dos politeísmos, gnosticismos e demais espiritismos) do conceito de Fé (crença em Deus Pai revelado em Jesus Cristo ressuscitado pela acção do Espírito Santo) é aquela no seio da qual foi proferida a minha afirmação – e lembro que ela foi produzida no contexto da análise da Encíclica Fé e Razão. Ao dizer que é possível a razão trabalhar separada da fé, não estou obviamente a dizer que isso é suficiente. O Catecismo da Igreja Católica e a Encíclica que estamos a estudar atacam ferozmente essa separação, mas atacam-na exactamente porque têm como pressuposto básico (só assim se justifica a redacção da Encíclica, só faz sentido tentar conciliar aquilo que anda separado e se anda separado é porque se pode separar, perdoem-me o truísmo) que muitas vezes o exercício da razão é feito sem a luz da fé, resultando num conhecimento imanentista, reducionista, que fica muito aquém da verdade profunda e do sentido pleno sobre a natureza, o homem e as suas acções [cf. FR, 7, 15, 16]. A razão sem fé produziu o positivismo nos séculos XVIII e XIX e a tecnocracia no século XX. Razão sem fé é ciência sem crença numa divindade superior, criadora do universo que confere sentido a tudo o que existe. A razão só por si (sem a fé) consegue alcançar a verdade, mas sem a fé não consegue aprofundar plenamente o sentido da existência humana. A este propósito, leia-se todo o capítulo II da Encíclica. A meu ver, o mais belo e interessante. Todo ele insiste na necessidade de aliar a razão à fé, porque apesar de reconhecer autonomia à razão, o Papa diz que a razão terá muito a ganhar se se aliar à Fé e vice-versa. Que tem a ganhar? O sentido da própria existência humana, do mundo e da história.

Pela razão o homem atinge a verdade, porque, iluminado pela fé, descobre o sentido profundo de tudo e, particularmente, da própria existência [FR, 20].

Assim, não é possível conhecer profundamente o mundo e os factos da história sem, ao mesmo tempo, professar a fé em Deus que neles actua. A fé aperfeiçoa o olhar interior, abrindo a mente para descobrir, no curso dos acontecimentos, a presença operante da Providência […] Por isso, a razão e a fé não podem ser separadas, sem correr o risco de o homem perder a possibilidade de conhecer, de modo adequado a si próprio, ao mundo e a Deus [FR, 16].

Pela razão sem fé é possível conhecer os factos do mundo e da história, mas não profundamente, diz a Encíclica. É a fé que nos leva a descobrir «a presença operante da Providência».
E, agora sim, vou ser deliberadamente polémico e semear a discórdia. Reconheço a vantagem e a beleza de ver e estudar o mundo com os olhos da fé (de facto, poder encontrar um sentido maior para aquilo que a ciência ou o estudo ou a reflexão nos vão dando a conhecer é um privilégio do qual usufruo pelo dom da fé que Deus me vai dando), mas tenho sérias reservas acerca da proposta da encíclica de injectar fé na razão, se for entendida como proposta universal e superior, por um simples motivo: receio um retrocesso aos teocentrismos culturais, que normalmente degeneram em teocracias e daí em fundamentalismos e pensamento único e que por isso vão contra a cultura plural e laica (não laicista) que o próprio Concílio Vaticano II diz respeitar. Será que o ideal era que todos os cientistas e filósofos tivessem fé e acreditassem no Deus da Revelação? Ou seja, nenhum sistema filosófico ou científico que pusesse a verdade da Revelação em causa seria possível. Estou a fazer-me entender? Até que ponto não precisamos de ateus e descrentes? Não teríamos um mundo monocromático e unânime? Já para não falar que muitas das aquisições conseguidas pela ciência e pela filosofia ao longo dos últimos séculos se fizeram justamente à sombra do ateísmo e do agnosticismo. Hoje dizemos que é possível entender o evolucionismo com os olhos da fé. No tempo de Darwin não foi bem assim. Criação bíblica e evolucionismo eram incompatíveis. Hoje percebemos que é perfeitamente possível conciliar a teoria heliocêntrica com o Antigo Testamento. Na época não foi bem assim. A minha dúvida é se o homem não se pode conhecer de modo adequado a si próprio e ao mundo (a Deus está claro que não) sem a implicação da fé. Gostava muito de vos ouvir sobre isto. Estou apenas a lançar achas para a fogueira, não tenho opiniões definitivas. Aguardo comentários e respostas.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Verdade e Fé à luz do cepticismo relativista

«Credenciada pelo facto de ser depositária da revelação de Jesus Cristo, a Igreja deseja reafirmar a necessidade da reflexão sobre a verdade».
Foi sob os auspícios desta epígrafe extraída da introdução à Encíclica Fé e Razão que "simposiámos" - o Martinho, o Padre Nuno Santos, o João Frade, o Jorge Bernardino e o Edson - a tragos de um reconfortante chá para mitigar o frio. Esta exposição não pretende seguir ipsis verbis os intrincados e ramificados meandros da nossa conversa de cerca de duas horas e meia. Talvez se aproxime de uma modesta síntese estilizada, meis verbis, do transcorrido das nossas cogitações. Das três perguntas propostas, a primeira reteve, maioritariamente, a nossa atenção, convidando-nos a relacionar a tríade conhecimento-verdade-sentido com o problema hodierno do cepticismo-relativismo-desconfiança.
João Paulo II, ao aflorar Fides et Ratio, estabelece como fio condutor de Fé e Razão a questão premente da verdade: «Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio».
Depois de séculos de relativa tranquilidade e segurança, ora porque dominados por uma perspectiva teocêntrica, que tinha nas Sagradas Escrituras o fundamento apriorístico de toda a verdade e de toda a moral, ora porque dominados pelo paradigma positivista (antropocêntrico), que outorgou à razão e às ciências naturais um estatuto divino com jurisdição explicativa de âmbito universal e determinista, vemo-nos confrontados, no século XX com uma crise científica, ideológica e filosófica sem precedentes, em que «tudo fica reduzido à mera opinião» [FR, 5]. É verdade que o horror detonado pelas duas guerras mundiais teve aqui um efeito avassalador, fazendo desabar todo o optimismo racionalista, todas as ideologias políticas e convicções sociais, obrigando a filosofia a eleger como cerne do seu discurso quer a questão do mal quer a linguagem. No próprio baluarte científico se infiltrou a descrença e a dúvida, obrigando-o a moderar a sua auto-confiança. O segundo princípio da termodinâmica disse-nos que nunca podemos predizer o futuro de um sistema complexo. As estruturas dissipativas de Ilya Prigogine são sistemas abertos que contam com a imprevisibilidade do factor tempo. É verdade que pulularam as ciências ditas humanas (ou do espírito) com uma elevadíssima ambição científica e a sua obsessão pelos métodos quantitativos e pelas estruturas (exs.: a sociologia de Durkheim, a historiografia da escola dos Annales, o estruturalismo de Levy-Strauss, o estruturalismo linguístico de F. Saussurre que inspirou a semiótica de Greimas e Roland Barthes), e o consequente abandono da trama narrativa, reduzindo o ser humano a curvas de linha, a trends seculares e os seus textos a meras conjugações de signos linguísticos discretos e auto-referenciais, sem relação alguma com o mundo exterior. Mas rapidamente se percebeu que o mistério do ser humano escapava por entre os dedos apertados da fria ciência dos números e das estatísticas. Descontente e insaciável, a implacável geração da liberdade sexual e do rock and roll, que não admitia espartilhos, desenfreadamente abriu a porta às teses do relativismo pós-modernista. Esbatem-se as fronteiras entre o certo e o errado, entre a norma e o anormal, entre o particular e o universal, entre o centro e a margem e própria moral começa a ser questionada em todas as frentes. As minorias e as franjas sociais ganham uma força inaudível e determinados princípios que religiosamente conservávamos (e que, por vezes, se revestiam de hipocrisia, xenofobia e intolerância) são abalados. Mas é bem possível que, em nome da tolerância, do respeito e da pluralidade, tenhamos atirado fora a água e o bebé. No campo das ciências e da cultura assiste-se à mesma onda anárquica. É verdade que se recupera a narrativa, o mito e o símbolo para dizer a complexidade do homem e o sentido das suas acções, mas descurámos os limites das interpretações, abrindo espaço para uma espécie de novo luteranismo exacerbado. Sem rei nem roque cada um interpreta à sua maneira e pensa à sua maneira: o homem volta a ser a "medida de todas as coisas" (Protágoras, sofista grego do séc. V a.c.). História e ficção (Hayden White), realidade e opinião deixam de ser discerníveis, interpenetram-se. Exemplo emblemático está na forma como o nosso Saramago, filho da poética pós-modernista, brinca, deliberada e artisticamente, com a verdade oficial e oficiosa, em livros como Memorial do Convento ou História do Cerco de Lisboa, para não falar das suas leituras alegóricas da Bíblia. De repente, vemo-nos mergulhados na tirania da opinião, do subjectivismo e numa bagunça ético-moral na qual não parece haver plataforma possível de entendimento. Passamos de uma verdade inflexível, autoritária, oligárquica e até aristocrática a uma verdade fluída, volúvel, maleável, popular, democrática. Perde-se em grande escala a segurança do pensamento, as certezas do conhecimento, a confiança inter-pessoal e instaura-se um certo clima de desconfiança, de insegurança, de descrença, de absurdo, de errância. Por conseguinte, se os homens não confiam uns nos outros como podem confiar no Transcendente? Se os homens não acreditam em si próprios e nas suas realizações culturais, políticas e científicas, como poderão acreditar num ser supremo que por natureza se exime e transborda sobre qualquer tipo de fórmula, dogma, conhecimento científico, silogismo ou argumento racional? Ora, sem esta referência ao Transcendente, adverte João Paulo II, caímos no individualismo egocêntrico e na tecnocracia vigente em que «cada um fica ao sabor do livre arbítrio, e a sua condição de pessoa acaba por ser avaliada com critérios pragmáticos baseados essencialmente sobre o dado experimental, na errada convicção de que tudo deve ser dominado pela técnica. Foi assim que a razão, sob o peso de tanto saber, em vez de exprimir melhor a tensão para a verdade, curvou-se sobre si mesma, tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar para o alto e de ousar atingir a verdade do ser. A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a sua pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação sobre o conhecimento humano. Em vez de se apoiar sobre a capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos [FR, 5]».
Deste descartar de Deus provêm as formas de agnosticismo e relativismo que nos conduzem às «areias movediças dum cepticismo geral» [FR, 5], que desvaloriza «até mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter alcançado» [Ibid.]. Assistimos, pois, a um pluralismo indefinido, com a única convicção de que todas as posições são equivalentes, e a uma desconfiança generalizada nos recursos cognoscitivos do ser humano. «Com falsa modéstia, contentam-se de verdades parciais e provisórias, deixando de tentar pôr as perguntas radicais sobre o sentido e o fundamento último da vida humana, pessoal e social. Em suma, esmoreceu a esperança de se poder receber da filosofia respostas definitivas a tais questões» [Ibid.].
É sobre este pano de fundo que João Paulo II sente necessidade de «restituir ao homem de hoje uma genuína confiança nas suas capacidades cognoscitivas e oferecer à filosofia um estímulo para poder recuperar e promover a sua plena dignidade [FR, 6]».
Da nossa parte, sondámos possibilidades de superação desta descrença na verdade, que dá azo à cisão entre Fé e Razão. Parece-nos que um testemunho cristão autêntico e inteligente é uma força poderosa para lutar contra a descrença e o cepticismo, abrindo frestas de esperança nesse muro de fumo que nos rodeia. Nesse sentido, os santos são modelos a imitar, não só pela sua coragem e generosidade mas pela forma ousada como amaram. As nossas acções devem ser nutridas pelo Amor, pois este detém um dinamismo conciliador, capaz de nos guindar para a verdade e fomentar a dialéctica Fé e Razão. Mas se o conceito Amor está vilipendiado e esvaziado de sentido, troquemo-lo pelo de compaixão, talvez mais actual e preservado. Estar atento aos sofrimentos do outro e ampará-lo e confortá-lo na sua dor pode ser a força revolucionária que temos para mudar o mundo: «Vêde como eles se amam». Por fim, cremos que esta busca de segurança, de pilares para a nossa vida, passa pelo regresso urgente à Sagrada Escritura, sede da nossa identidade e das máximas intemporais que nortearam e podem voltar a nortear não apenas cristãos mas toda a humanidade. Para os cristão, impõe-se ainda a (re)descoberta dos documentos da Igreja e dos escritos dos nossos pais na fé.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Lição nº 1: Evangelização. Proferida por D. João Alves.

Coimbra, 24 de Novembro de 2009. Instituto Universitário Justiça e Paz, 21:15h.

Convidado: D. João Alves.

Presentes: D. Albino Cleto, Edson, Jorge Bernardino, Liliana Pimental, Martinho Soares, Pe. Nuno Santos, Rui Vilão.

Síntese aproximada da sapiente lição proferida por D. João Alves:

Linha doutrinal:
O apostolado dos leigos consiste antes de mais em ser santo e ter como centro da nossa actividade Jesus Cristo. Ninguém se anuncia a si próprio mas a Jesus Cristo (já Pe. António Vieira o dizia no Sermão de Santo António aos Peixes - acrescento eu). É a Jesus Cristo que devemos anunciar. A oração, o testemunho, a formação espiritual, a participação nos sacramentos e a direcção espiritual são a alma de todo o apostolado. O apostolado não é uma actividade puramente intelectual, cerebral, argumentativa; deve brotar antes de mais do coração, iluminado pela razão. O problema dos cristãos - sobretudo dos que têm formação académica ou teológica superior - é que muitas vezes têm a fé presa na cabeça, não falam do que vivem e sentem: não deixam a fé fluir do intelecto para o coração. Sabem arengar e argumentar em prol da doutrina cristã, mas as suas palavras não passam de retórica balofa, verborreia, pois são desprovidas de vivência espiritual, ficando apenas no plano racional. (Parafraseando Anselmo Borges: acreditam que mas não acreditam quem - aduzo eu). Ora, o cristianismo não é um corpo ideológico, é uma pessoa, Jesus Cristo. Ser cristão não é a mesma coisa que pertencer à juventude socialista ou social democrata ou comunista ou a outra qualquer associação de carácter partidário, cívico ou ideológico. Logo, a Evangelização eficaz não se faz por professores exímios, vedetas, escritores notáveis, mas por aqueles que de forma humilde e apaixonada testemunham a sua fé. Só os santos podem impressionar, só uma vida de santidade pode tocar o coração dos homens.

Para pensar:
«Diz-me que densidade tem a tua vida espiritual e eu dir-te-ei a capacidade e o alcance da tua evangelização.» (sic).
«Qual foi a maior alegria que tiveste até hoje no anúncio de Jesus Cristo?» (sic.)

Linha de acção:
O cristão honestamente empenhado na acção evangelizadora está obrigado ao estudo e à meditação da Palavra de Deus. O cristão tem de ser uma pessoa especializada na Sagrada Escritura e nos textos doutrinais da Igreja, devendo conhecer pelo menos os seguintes documentos com profundidade:
O cristão deve ser espiritual e culturalmente competente. Esse é um dos maiores handicaps dos leigos, responsável por alguma da ineficácia da nossa evangelização (o mesmo Pe. António Vieira, ibid., diria que é um dos motivos pelo qual o sal não salga). A maioria dos cristãos não tem nem se preocupa em ter formação adequada para poder responder às questões do nosso tempo.

A estratégia evangelizadora não passa por uma abordagem fanática, proselitista, impositiva, ofensiva, catequética. Antes de mais, o cristão deve procurar criar empatia, gerar amizade, deve preocupar-se em causar boa impressão, deixar uma boa imagem de si: uma imagem de credibilidade, confiança, tolerância, integralidade, coerência. É extremamente importante a qualidade e a densidade do testemunho. O que impressiona as pessoas do nosso tempo são os cristãos que não se guiam pelos valores da moda, que ousam pensar e ser de modo diferente, que destoam das massas e têm uma postura crítica diante das tendências e dos monocromatismos. Só depois de criado este clima de confiança e amizade, poderá haver lugar para o anúncio catequético. Só depois faz sentido, mediante a curiosidade indagadora, defender/proclamar humildemente a nossa fé, o nosso credo, os valores evangélicos que animam a nossa vida, em suma, Jesus Cristo. Mas sempre com o cuidado e a consciência de que não somos donos da verdade. Daí a exigência de humildade, virtude que todo o cristão deve ter como primordial, a base da santidade.

Leitura aconselhada por D. João Alves:
Manuel Falcão, O Leigo. Identidade e missão.

Outras leituras sugeridas pelo F.R.A:
Pe António Vieira, Sermão de Santo António aos Peixes;
Dostoiévski, Os irmãos Karamázov (imperdível: um verdadeiro tratado de espiritualidade e de teologia cristã, para além de um brilhante romance - património indiscutível da humanidade).